Análise – A Normal Lost Phone nos coloca no íntimo do outro

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É incrível e aterrorizador pensar que a representação do que somos está contida dentro de um aparelho eletrônico. Um celular pode não mostrar nossa humanidade, mas é aquele que guarda grande parcela de nosso íntimo. Mensagens, publicações em redes sociais, fotos, vídeos etc.; é uma enorme fatia pessoal e individual que pode aparentar, ou mesmo ditar, aquilo que cada um de nós é. Trata-se de um eu limitado. Dito isso, imagine então um desconhecido achando o seu celular e adentrando ao fundo do seu eu presente naquele aparelho. A Normal Lost Phone busca nos colocar nesse papel.

Aqui nós próprios somos os agentes ativos que realizam as ações dentro do jogo. Não possuímos nenhum personagem na tela que execute comandos. Somos apenas nós e o celular perdido que achamos. Esse método de oferecer-nos interações com o jogo é ainda um tanto inédito. No passado, já vimos obras belas como Cibele e Her Story, e até mesmo o simples Sara Is Missing, aproveitando-se desse meio a fim de tentar oferecer algo único.

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A produção da Accidental Queens trilha a mesma estrada. Não somos aqueles que vestem a roupa de um avatar pré-determinado. Não somos aqueles que o comandam. Não somos aqueles que determinam se o tal deve seguir por lado X ou Y. O jogo desejar passar-nos a sensação de sermos nós mesmos enquanto jogamos.

Interface de um celular, porém menos sólida

A Normal Lost Phone utiliza da interface padrão de smartphones para nos imergir dentro de sua história. Entretanto põe de lado a concretude dos layouts tradicionais de celulares para apresentar-nos um lindo estilo de arte com algumas imagens e interfaces cuja produção aparenta ter sido feita com giz de cera. A maior parte do título tenta manter esse padrão visual, embora adote, inevitavelmente, em certas partes a solidez em que vemos nos aparelhos atuais. Imagens que encontramos na galeria, fotos de perfis, capa de álbuns no player de música, ícones de aplicativos; todas mantêm uma belíssima coerência ao longo do jogo.

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O visual trata-se de um companheiro do real cerne do título: as informações que qualquer outro celular possui. O aparelho que estamos usando foi achado por nós e não sabemos quem é o seu proprietário. Como se observa em muitos casos, você pode apenas ir até as configurações e apagar todos os dados do aparelho. Simples. Se deseja encontrar o dono, porém, é necessário que busque dentro do smartphone pistas que o leve a uma conclusão. Antes de começarmos a procura, uma indagação pessoal paira sobre nossas cabeças mesmo sem o título nos colocá-la: é ético invadir, e depois cada vez mais, a privacidade de um indivíduo?

Inicialmente, as mensagens são o ponto de partida mais lógico para tentar-se concluir quem é o dono do celular. Começamos a ler uma troca de mensagens, depois estamos em outro bate-papo, talvez um que tenha lacunas entre os diálogos que não temos o contexto para entendê-las, e nos vemos então lendo todas as mensagens para tentarmos saber um pouco mais sobre o proprietário. Após tanto adentrarmos, é um beco sem saída, devemos ir até o fim.

A narrativa de A Normal Lost Phone é posta em camadas a nós, apesar de não ser algo que nos é colocado claramente. Cada uma delas faz com que eventos do passado sejam explicados por meio de informações que adquiriremos em outra camada posteriormente. Isso se trata daquilo que torna o dono do smartphone tão complexo, e somos instigados a tentar compreendê-lo conforme lemos mensagens, emails e vemos e achamos imagens. Na minha experiência com o jogo, não me importei muito com o proprietário, chamado Sam, porém tive grande interesse em saber mais sobre algumas pessoas que o cercam e suas relações com ele. Minha afeição por Sam floresceu muito para lá do início da busca por informações.

Mensagens nem sempre nos representa

Tal qual a realidade, o celular possui muitas mensagens — deixando de lado os emails — que não levam a lugar algum, como felicitações por um aniversário ou algo interessante que Sam fez. Embora eu pudesse tratá-las como adições desnecessárias, são mensagens do gênero que reforçam a tentativa de imersão. Além disso, algumas outras despertam um sentido de curiosidade, e a primeiro momento parecem ter seu término poucos instantes após rolarmos a conversa para baixo, mas, quando chegamos em certos pontos, o que achamos ser mero detalhe da experiência torna-se algo maior do que imaginávamos.

São também elas que fazem a abordagem adolescente inicial de toda a história, englobando temas como homofobia, depressão, machismo, pressão por estar próximo de completar os dezoito anos, entre outros. Alguns pequenos diálogos cumprem somente o papel de dar o tom da trama a quem joga. Sem eles, provavelmente toda a história tornaria-se muito mais apressada e, possivelmente, ao menos nos importaríamos com ela a priori. As narrativas emergentes da principal são as que mais chamam e prendem a nossa atenção.

As mecânicas de A Normal Lost Phone são elementos que se fundem à narrativa de maneira que já vimos muito acontecer, embora seja incomum para muitos. A medida que lemos devemos interagir com a interface do celular, afinal a tela não irá rolar para baixo sozinha, e basicamente é a isso que sua jogabilidade se resume. Narrativa e o que chamamos de jogabilidade se unem no processo de abrir uma caixa de mensagens e ler o que há dentro dela. Conforme interagimos adquirimos mais informações sobre a história, praticamente em simultâneo durante toda a experiência. Uma fusão que rejeita preceitos antigos dos videogames.

Para a apreciação e entendimento total das mensagens, o jogo possui legendas e interface em português do Brasil, o que é ótimo, uma vez que para entender o que se passa é necessário que leiamos muito. No entanto, a tradução possui algumas inconsistências que podem interferir a compreensão, desde frases que não têm muito sentido quando transpostas para nosso idioma até palavras escritas erroneamente. Aqui e ali tem-se algumas expressões brasileiras comuns, mas por vezes é preciso ler mais uma vez para entender a frase. Apesar de isso não ser um grande empecilho quando analisamos a experiência como um todo — nem mesmo uma barreira –, eu recomendo que, se você possui ao menos um mínimo de conhecimento da língua, vale a pena tentar jogar o título em inglês.

Uma experiência cujo ecossistema envolve inúmeros elementos

A trilha sonora de A Normal Lost Phone trata-se de algo em especial que gostaria de destacar. As músicas que acompanham o jogo me surpreenderam de grande modo. Inicialmente existem onze músicas no player de música do celular, e, embora muitas sejam similares umas às outras, incrivelmente senti que todas pareciam se encaixar com o que estava lendo. Não me refiro a uma música triste em um momento triste, ou ainda uma música agitada em um momento feliz, mas uma sensação de que todas se alinham a tudo o que foi escrito pela Accidental Queens. Elas não se aparentam como um aditivo da experiência, e sim um dos pilares que a compõe. Portanto é altamente recomendável que você jogue escutando a trilha sonora do jogo.

A Normal Lost Phone é uma história fictícia. Porém, isso não impõe de maneira alguma que doses de realidade sejam injetadas no jogo. Assuntos delicados que pouco vemos nos videogames são tratados com sutileza aqui. Com certeza foi o jogo onde mais aprendi sobre sexo — não o ato, mas o sexo o qual somos atribuídos ao nascer –, orientação sexual e gênero; sempre tratando com extrema diligência temas recorrentes, e se aprofundando naquilo que jogos atuais tentam meramente criar uma camada superficial e colocam de lado pouco tempo depois, ou nem mesmo abordam. Além disso, comumente observamos situações relacionadas à adolescência — naturalmente, já que o proprietário do smartphone se encontrava nessa fase da vida –, sendo a busca por identidade a que mais detém evidência durante a experiência.

A produção da Accidental Queens poderia se estender facilmente, uma vez que sua estrutura permite que mensagens sejam infindáveis. Porém, ele sabe quando precisa terminar, e nem sabemos se chegamos ao fim quando enfim o atingimos. Apesar disso, momentos em que precisamos achar resoluções para quebra-cabeças, que sempre envolvem senhas, podem demorar muito para alguns. Quando cheguei em certo puzzle, não consegui de modo algum encontrar o que é necessário para resolvê-lo. Precisei apelar enviando um email para o estúdio questionando qual seria a senha. A dificuldade que este em especial possui é desnecessária e foge dos padrões já apresentados antes.

Embora todos os esforços em fazer com que nos preocupemos com Sam, eu não consegui chegar ao fim do jogo com grande afeição pelo protagonista da trama. O conjunto de histórias que o cerca, algumas que ele próprio é incluído, me pareceu ter força própria, uma que vai além mesmo da narrativa principal. Minha afeição pelo personagem, entretanto, não tira de modo algum as qualidades que o jogo tem. No que se propõe a fazer, é ótimo.

A análise acima foi feita a partir da versão para dispositivos Android de A Normal Lost Phone. A cópia do jogo testada foi providenciada pela Accidental Queens. O jogo também possui uma versão para PC.

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